O Culto de Qerhet

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Artigo ciêntifico do departamento de Xenologia, ‘Patafísica e estudos ocultos da agência LIMEN escrito por Dadolocesimo Keptuve Lawrek e Timo de Gestokenvoet



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O Gás na cosmogenese de Qerhet
 

 A existência do culto de Qerhet foi notada pela primeira vez pela agência LIMEN ao estudar espectrogramas de materiais fonográficos, com finalidades mercadológicas, de empresas de gás. Foi notado pelos pesquisadores que alguns materiais exerciam um sutil efeito psicológico desorientador em alguns indivíduos, principalmente fonogramas, quando reproduzidos em aparelhos específicos. Ao analisar o espectrograma da música “Sinos da rua’’ da Ultragaz, o resultado era uma série de sentenças aparentemente sem sentido, que hoje, após uma pesquisa mais robusta sobre o fenômeno, entendemos como fragmentos dos cantos de Guz’orkah, nossa fonte primária sobre o culto de Qerhet. Essa fase preliminar de pesquisas foi muito problemática para a agência. Devido a nossa ignorância acerca da natureza do culto de Qerhet, as medidas de segurança necessárias para a realização destes estudos ainda não haviam sido concebidas. Ao que tudo indica, a nossa tentativa de estudo inicial foi notada por Qerhet, ou por seus adoradores, pois as informações disponíveis sobre essa fase de pesquisa, encontram-se envoltas por uma ofuscação temporal.

Muitos dos agentes presentes nas pesquisas primárias não se lembravam de ter participado destes estudos. Porém, quando por acaso os documentos foram achados novamente, esses mesmos agentes começaram a recordar do envolvimento que tiveram com a pesquisa. O problema, porém, é que cada um se lembrava de coisas totalmente distintas, tanto acerca dos procedimentos, quanto dos conteúdos da documentação da pesquisa. Foi notado que após recordarem esses acontecimentos, alguns agentes começaram a alegar a existência de agentes e departamentos que nenhum de seus pares ou superiores conheciam.

O caso mais extremo que se tem registro, que atesta a intervenção temporal de Qerhet, é a de um grupo de pessoas desconhecidas para nós que demonstravam possuir um conhecimento profundo sobre a agência. Todos estes indivíduos possuíam problemas cognitivos que obstruíam a comunicação, e apresentavam um comportamento excêntrico, que podia ser caracterizado como anacrônico. A conclusão chegada pela agência, é que estas pessoas eram agentes do LIMEN, mas que por conta da intervenção temporal de Qerhet, foram eliminados da linha temporal a qual pertencemos, preservando apenas parcelas de memórias do tempo apagado.

 

Após termos obtido conhecimento da capacidade deste fenômeno, tomamos as medidas necessárias para que isto não se repetisse. O escopo de estudo resultante, portanto, era uma quimera informacional de todos as memórias e informações contraditórias que existiam sobre os experimentos primários.

 

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Fig.1: Ruínas de uma casa guardada por Heh, LIMEN, 2018

O estudo teve um avanço em 2018 com a descoberta de uma BSS (Bolha de Superposição Espaço-Temporal, Cf. Relatório BSS-23P50217AA, 2025*) na sala de um edifício na região de xxxxxxxxxx xxxxxxxxxx. Denominada por BSS-A839, esta anomalia apresentava uma distorção temporal que datava desde aproximadamente 1570 a.C. e uma distorção espacial de 193øF391 o que colocava o local próximo a Akhmim no Egito.

 

Foi observado que a atividade noética nesta BSS tinha conotação ritualística, e foi teorizado que a BSS estava ligada a algum tipo de templo da antiguidade egípcia.

Agentes foram enviados para Akhmim no ponto geográfico onde existia o local no qual a BSS estava tendo contato noético.

Foi descoberto no local ruínas de uma antiga cidade, e no ponto exato onde a BSS marcava, existia uma casa com uma parede ainda erguida,  contendo um desenho de uma porta falsa (representação pictórica de uma porta, que funcionava como portal para o trânsito de mortos, encontrado com frequência em tumbas) encimada pela figura de Heh, o deus egípcio da eternidade (Fig. 1).

Foram encontrados nesta casa uma quantidade considerável de materiais. Boa parte do material recolhido, livros, imagens e fragmentos de textos, serviram de base para entendermos o culto envolvendo Qerhet.

 

Com base no estudo recolhido, foi possível descobrir a existência de fontes de materiais adicionais, que foram encontrados escavando a internet e conectando com pistas em livros esquecidos pelo tempo. Não se sabe ao certo o quão antigo é este culto. A partir dos dados que coletamos e das nossas pesquisas é possível concluir que este culto coexistiu com civilizações contemporâneas a civilização egípcia, mas suas origens podem remontar a períodos ainda mais distantes.



QERHET E O BOTIJÃO

Qerhet canta em sólida contratual. Assim começa o primeiro canto de Guz’orkah em seu relato da criação mítico-burocrática da empresa Ultragaz. Qerhet é a personagem central desta cosmogonia. A deidade andrógina representa o gás primordial e sua habilidade de auto-propanação pelo cosmos, um movimento de ontogênese autopoiético que se refaz constantemente durante o processo, como “vaso de aduelas disjuntas que perde sua água rolando perturbada no declive irreversível de sua própria morte, mantendo por um tempo o nível de sua existência”. A imagem evocativa de um “vaso de aduelas disjuntas” é um reflexo das constantes transformações pelas quais a divindade passa, mantendo sua existência em um equilíbrio instável. A figura da botija, vasos e botijões de gás como representações de Qerhet reforça o paradoxo ontológico que ela personifica – a dualidade e interconexão de substâncias aparentemente contraditórias. Devido à natureza de seu culto sabe-se que grande parte da sua cosmologia foi alterada com o tempo. Deste modo, sua própria gênese é um paradoxo pois se soubéssemos ao certo seus detalhes, sua existência entraria em contradição consigo mesma e ela morreria. Sua manifestação se desenvolve de fato como um contrato na medida em que seus adoradores mantêm seu mito relevante propanando constantemente, contratualmente, a própria crença. Por este motivo, seus cultuadores acreditam que Qerhet vive presa em um loop temporal – suas ideias estão tanto no presente quanto no passado.

 

No cerne desse culto enigmático, surge a figura da Sacerdotisa Akhamit, uma figura mística que desvenda os véus entre os mundos material e espiritual, e que ocupa uma posição central nas práticas e rituais ligados a Qerhet. Akhamit é considerada a emissária terrena da deidade andrógina, sendo a intermediária entre os adoradores e a essência transcendental de Qerhet. Analisaremos posteriormente na ostraca AFN 193JR0 (Fig.3), denominada Akhamit saúda Qerhet, o papel da influência da sacerdotisa para o culto de Qerhet e como esta relação pode jogar luz sobre o caráter andrógino da deusa egípcia.


O Culto de Qerhet F1xdYefu5PgkINt8cTX5Pim7z8O7ZZwNCuhMIbEG5leL3nesUiXQ5ZQbSlbbDlvU7p0uZhN6Sl6B-BpcUoUt-GOprb35B8WKzIdgAMJA3uChwLMJ3sZghrl_5LPhk9Aa_aF7oLyPLWcNGL6PuPNC7wO Culto de Qerhet FW-UqBNnIEuXN_gJToiDOFKzk7jgNEJsnf95IrXiI1cNy-BYb9yGHbOKn0Qvk1XS3Eh4fZD6v2tv4FHCg8s2lekzkqE9MYaEyWpy8p9EF8mVP5hPDuuf48Yi5qcBjGxlag1HDMdU9qhiQxkdClUwtl0
Fig 2: Urna cerimonial de cerâmica com escritos de louvor a Qerhet, cerca de 1752 a.C, (QRT 24.3.219a); Fig 3: Ostraca com notação hierática de Akhamit. (AFN 193JR0)


Além da figura de Akhamit podemos ver diversos personagens e figuras históricas (cuja existência ainda não foi comprovada) nos textos e materiais recolhidos. Dentre eles temos o faraó Nebqerhet, Neferhau, sua consorte (que supomos ser Akhamit, assumindo o papel de rainha, com outro nome) e um feiticeiro chamado Hekaenthot, que age como rival de Nebqerhet. Estas personagens mostram-se como parte daquilo que chamamos de parte histórica do culto, conjunto da obra em que os dados atestam para períodos do passado cujas interferências anacrônicas se restringem em grande parte a recontextualizações simbólicas de elementos conceituais e iconográficos modernos. A outra parte, entendida como extemporânea, refere-se a escritos, textos e elementos gráficos que possivelmente sofreram alterações mais drásticas, tendo apresentado elementos anacrônicos mais difíceis de discernir sem aparelhos especiais. Dentre estes textos temos os cantos de Guz’orkah que apresentam uma variedade de personagens conceituais e ideias anacrônicas como Erica Mariana (suposta fundadora da Ultragaz), Iqbal Al-Ghazali, EGE personagem-caminhão de gás, dentre outros. 

 

A existência desses dois modos textuais espelha o complexo da temporalidade em Qerhet, o movimento intrincado do próprio tempo e das atualizações retrocausais tão caras para a deusa.

Outra conexão interessante de Qerhet é com empresas de distribuição de gás. Após consolidar nossos métodos de estudo, a empresa Ultragaz se tornou nossa principal fonte de pesquisa sobre Qerhet. Descobrimos que todas as empresas de gás fazem referências cifradas à deusa e ao seu culto em suas propagandas, mas preferimos usar a Ultragaz por praticidade, pois seu material oculto se assemelha ao de outras empresas analisadas. Porém, é importante citar que estudos complementares realizados com material da Aygaz (empresa turca de distribuição de gás) revelaram informações adicionais sobre Iqbal Al-Ghazali, citado vagamente nos cantos de Guz’orkah.




3.1 Tradução e transliteração da Ostraca AFN 193JR0
Akhamit saúda Qerhet

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Material: Calcário
Local: Casa em ruínas em Akhmim
Datação: De 1570 a.C a 1590 a.C

 

Descrição: A ostraca foi escrita com tinta preta (apenas frente) com 8 linhas que são legíveis durante todo material. Está em boas condições, com apenas algumas partes lascadas. A tinta a partir da linha 8 está ligeiramente desbotada mas ainda pode ser lida sem esforço significativo. A ostraca, assim como alguns dos outros materiais colhidos de Akhmim, exala um odor de enxofre. Não conseguimos até o momento determinar o motivo disto. Uma das hipóteses levantadas decorre do uso de enxofre para sinalizar o odor do gás em botijões. Deste modo a ostraca estaria embebida de enxofre como um marcador da presença espectral de Qerhet.

 

Análise: A primeira coisa que descobrimos ao estudar o texto da ostraca, foi o significado exato do nome Qerhet “ḳrḥt. Qerhet é uma palavra usada para se referir a um tipo de vaso, mas no texto é usada como nome pessoal de uma divindade. Isto ocorre de modo similar a como nomes de certos elementos da natureza e aspectos da realidade eram interpolados com determinativos nos textos para assumirem o papel de divindades. O texto da ostraca de Akhamit, junto de outros textos encontrados em Akhmim, são os únicos textos conhecidos do Egito antigo onde a palavra qerhet é escrita acompanhada do determinativo (A40)  usado em nomes de deuses O Culto de Qerhet JTHNaxJrGPu4AuKNkM2vANcrNdX6TdJbL4oC1Oo60o_6ZFsNXNaWVJ8XBsZu1f06VegN2fFR4RiOd1wu8UJGFjkvEjPGDalKkGt51j-361M6JCJlh8Vq8uIdD9omsylu_QhA2590y1v4rOvYiAW2Odc

Nas fases preliminares da pesquisa, nas fontes disponíveis, o nome Qerhet aparecia como figura divina, mas a origem do nome e o seu significado não eram auto evidentes pelo contexto em que estavam inseridos. Encontramos referências a uma divindade feminina com forma de serpente que era adorada no alto egito cujo nome era Qerhet, mas fora o nome, nada em relação a essa divindade parecia ter relação direta com a divindade presente nos fragmentos que possuíamos.

 

Posteriormente, encontramos várias citações ao nome Qerhet em textos falando da ogdóade, um grupo de oito divindades criadoras, 4 femininas e 4 masculinas, que juntas formaram o mundo a partir do caos primordial.

 

Qerhet aparecia como a consorte do deus Gerh, cujo nome significa noite. O problema é que estas citações eram baseadas num erro de transliteração, onde o hieróglifo que corresponde a letra G no nome era transliterado como Q, transformando os nomes Gerh e Gerhet em Qerh e Qerhet. Não podemos ignorar, porém, que este erro pode ser resultado de uma intervenção de Qerhet e seu culto, ainda mais ao levarmos em conta a relação que a deusa tem com o deus Nun e Heh, dois membros da ogdóade.

 

Qerhet é um nome feminino, isto pois no idioma do egito antigo, palavras que terminavam com T eram consideradas femininas. Porém no texto da ostraca, Qerhet é abordada como uma figura masculina. Isto pode ser notado pela ausência do t na palavra “nb”, que significa senhor. Em sua forma feminina, a palavra “nb” seria escrita como “nbt”.

 

Outro indicador explícito dessa aparente inconsistência de gênero, pode ser notada pelos trechos onde é dito que Qerhet é responsável por “engravidar a própria mãe” e que ele é o seu próprio pai. Porém, existem textos que seguem o sentido expressado nesse trecho, mas que expandem o entendimento do significado, dando a entender que Qerhet também é a mãe, dentro de uma narrativa mitológica que insinua a faceta autopoiética de Qerhet.

 

Ao levarmos em conta isso, podemos pensar que de forma velada, Qerhet é abordada como uma figura feminina nesse texto, mas no que tange a narrativa desse texto, o autor, ou autora (mais provável) decide que Qerhet deve protagonizar assumindo sua faceta masculina, como ator ativo da ação. Essa ambiguidade reforça o caráter andrógino de Qerhet, que pode ser interpretado como uma representação simbólica do conflito não resolvido do passado e futuro, iniciado pela introdução do paradoxo ontológico que dá origem a Qerhet. Ou seja, a dualidade do tempo, exprimida pela dualidade do gênero.

 

   É interessante citar que em outros textos encontrados em Akhmim onde Qerhet é abordada como uma figura feminina, os textos têm a particularidade de aparentarem ser projeções da autora (ao que tudo indica Akhamit) na figura de Qerhet, como se ela e a deusa formassem duas facetas de uma mesma entidade.

 

A ostraca começa com uma breve saudação na seguinte forma: “inḏ-ḥr=k sḫm ḳrḥtSaudações a ti poderoso Qerhet. Essa forma curta é frequentemente vista em obras como cantos e hinos, onde há uma saudação direta à Qerhet, como em MG 302 e GR 1075b.

 

Não há registros históricos da existência da cidade de Mompa, porém seu nome aparece com frequência em alguns textos. Presume-se que a cidade seja mitológica, e que o seu uso no texto seja simbólico, tendo em vista que a palavra surge em outros textos sem o determinativo usado em nomes de cidades, configurando-se pelo contexto como um tipo de neologismo sem etimologia conhecida usado para se referir ao complexo de casas que, pela iconografia anacrônica, parecem representar prédios.O Culto de Qerhet 8wVphjzJcTrt5J1KOPaLJYFdr8Eoy41oJeaV1FZ_awx3F2iZ88dU2Xw_HnWa-xbGwWx-yLX7ScBZwBIulKeVTaE0zU5pAPd6_qYUsHLpmEOzoGWFrnpBfVVmCH7B-4s1qIrpL3Qycbdcenw0-ZhEhTw

Em um primeiro momento tínhamos como hipótese que “wbn=k m ḥwt-ḥḥ” “tu que se levanta da casa de Heh” representava a casa em Akhmim cuja fronte mostrava a figura de Heh. Porém, após estudo das demais obras vimos uma conexão muito mais profunda entre as duas deidades. Observamos que Heh e Qerhet coexistem como uma mesma entidade, um meta-deus, em alguns textos devocionais (como em GR 1075b), de modo análogo a como Amon e Rá foram combinados, formando Amon-Rá ou como Hermes e Anúbis viraram Hermanúbis.

 

Ao estudarmos Heh, e como sua simbologia é recontextualizada nesse novo complexo mitológico, conseguimos descobrir mais sobre Qerhet. Heh, deus egípcio da eternidade, é sempre representado segurando duas palmeiras, que representam o tempo. Com base em outros textos extraídos de Akhmim, deduzimos que no contexto mitológico de Qerhet, as palmeiras que Heh segura representam o passado e o futuro. Heh, situado no meio, segurando as duas palmeiras, simboliza Qerhet, que se situa de maneira literal e metafórica fora do tempo, controlando o passado e o futuro.

 

 Essa copulação simbólica de Heh-Qerhet retrata o que entendemos de forma literal: A deidade se encontra presa em um loop temporal instanciado por um paradoxo ontológico que culminou em sua gênese, e de forma metafórica o ato de auto-propanação da crença pelos adoradores reatualiza o potencial da deusa no tempo histórico. De certo modo, como ressalta Barton (1940, p.29), esta relação temporal pode ser entendida como uma forma de retrocausalidade, tendo visto que o “acontecimento é sempre instanciado a posteriori, seja por propanações de cultistas ou seja pelos inúmeros paradoxos que se mostram sempre necessários para a própria existência da deusa”.

 

Em outros textos disponíveis, essa dinâmica simbólica de Heh-Qerhet é reformulada. Em alguns textos, Qerhet é associada a consorte de Heh na ogdóade, a deusa Hauhet, e já em outros, ela assume o papel da deusa Renpet, cujo nome significa “ano”. Nesta forma, ela assume papéis similares aos de Heh, em sua relação com a eternidade, sendo chamada muitas vezes de “Senhora da eternidade”. Essa multiplicidade de associações com outras divindades é explicada quanto entendemos que, devido a relação paradoxal que Qerhet tem com o tempo, e sua própria gênese, os agentes responsáveis pela sua concepção em contextos mitológicos são identidades que Qerhet assume, personificando sua faceta autopoiética de modo retrocausal.

 

No texto da ostraca temos uma variação dessa narrativa mitológica na oitava e nona estrofe que dizem: “íw=k m n nw ẖt-f” “Tu vieste do útero do tempo” essa estrofe ressalta o não-lugar de Qerhet com relação à temporalidade, e sua natalidade advinda da copulação com o tempo, por meio da introdução do paradoxo, bem como o fato de Qerhet chegar ao egito vindo de um “tempo ainda não concebido”, repousando no útero, ou seja, o futuro.

O Culto de Qerhet Tpr_dNFxchZowpdN5srLc-d_WZoQVUmOCrI1Mglq_cq8XUslJygGoAUvlsHpyNQc3VuCVq9LmppDPXYTRprTzMAg1vMrTFtBnTAeL5gVWnhJU1-xiH5__RV0Y4ZATDen-mBGMuOblavk_RgEs-SOHX0O Culto de Qerhet Is3wc8z4fJUSQgMJMgQ8qEL7lHSOlpAu3q2jZHI2QjSxE4BQ5cZd1ouQ8r_AOe6eUxjJJD3yRfLytCD7SJ03O-MtvD3DBXUKLMz3JAubFEo2gaTWylq5kp8SUdD3Jv8cgcr8ss3JHm7peCnvvV9baGE

O trecho “ptḥ tw sti=k m(w)t=k wn=k it=k Tu criaste a ti mesmo, engravidaste tua mãe, tu és teu pai.’’ é uma permutação da narrativa de concepção autopoiética, onde os pais de Qerhet são agentes retrocausais que Qerhet assume para que possa trazer a si mesmo a sua existência. De forma velada, Qerhet assume neste texto o papel da mãe, enquanto que de forma explícita, se assume como o pai auto criado (usando um epíteto comumente associado a Rá, ptḥ tw, o auto criado) que copula consigo mesmo, em forma feminina. Este enredamento complexo simboliza o desdobramento do tempo em si mesmo, que forma passado e futuro, bem como o fluxo paradoxal que movimenta Qerhet.

 

A frase na décima estrofe ”Tu conténs as águas primordiais, tu és senhor do ka de Nun” revela o aspecto gasoso da relação entre Qerhet e o Caos. O Nun é o nome dado pelos egípcios ao mar primordial que, em algumas versões da gênese de Atum-Rá, foi o local onde o deus solar se ergueu, num monte de terra chamado de Benben. Isso levanta um paralelo interessante, se considerarmos a associação evidenciada por Hal, XI, 35, da “pedra benben com a figura do botijão”. Enquanto o monte benben é relacionado com a gênese de Atum-Rá, o botijão é o catalisador imagético da autopoiese de Qerhet. Outro paralelo interessante é demonstrado pelo fato de Nun ser a interpretação egípcia do conceito do caos. Se levarmos em conta que etimologicamente, e teologicamente (segundo as fontes fragmentadas que possuímos acerca do culto da Ultragaz) o gás é uma manifestação do caos, é possível teorizar que no texto de Akhamit, o termo “nb n nnw kꜣ=f” ”senhor do Ka de Nun” é a maneira dos egípcios se referirem ao gás expelido pelo botijão. O Ka é a parte da alma, dentro do sistema religioso egipcio, que se assemelha ao conceito moderno de espírito. Quando o botijão expele gás, o gás contido em seu interior, que está em estado líquido, perde a pressão, voltando ao estado gasoso; O estado gasoso da matéria é expressado pela ideia do Ka, uma forma não tangível que a água (o Nun) toma ao ser expelido por Qerhet.

Esta leitura configura uma hipótese da conexão da deusa com o gás como espírito que surge da transmutação do caos primordial. A partir de pHal do texto VM 3991, pode-se ver o paradoxo da intangibilidade da deusa que deu a origem a sua morfologia. Segundo Hal, citando o faraó Nebqerhet, Qerhet se configura como “espírito, até então desconhecido, que não pode ser contido em recipientes nem reduzido a um corpo visível”. O autor ressalta a natureza contraditória da deusa que apesar de intangível, é “representada por meio de recipientes materiais”.

Podemos ver frequentemente, como representação dessa natureza paradoxal, figuras de um botijão em formato de garrafa de Klein (ver Figs. 7-9 e 5.1) representando a confusão entre dentro/fora que a configura enquanto mecanismo pneumático de autopoiese. Este mecanismo revela Qerhet enquanto espírito que engendra a si mesmo, paradoxalmente, pois, precisa ter sido conectado com um exterior do qual afeta e é afetado, como parte de um mesmo sistema em ebulição.O Culto de Qerhet ZDuNSdi0l67OCEkOfItfH0iaGcH0JOipcRTHgIYGQYz6ys1GasqDBRbVfSdtuylhzjLd_ciSBqt-mHKVBulk-3S7SB1qmirLDYLhBSp3nlzZYbK64XwJgX5bujsMygvIlASxTUT97H1dBdo4F8ECReU



OS CANTOS DE GUZ’ORKAH

Os cantos de Guz’orkah, como outros elementos do complexo mitológico de Qerhet, foram descobertos fragmentados, com pedaços espalhados em memes, ocultos por esteganografia em fonogramas, usados em materiais de propaganda e marketing de empresas que se dedicam à venda de botijões. Novamente a figura conceitual da auto propanação enquanto ato de manifestação do caos gerador está presente performaticamente no texto.

 

O texto começa com a criação da empresa Ultragaz por Qerhet e Erica Mariana, personagem que segundo o texto está ligada com “a MÃE a demais o Brasileiro e Feca” (1.6). Para isso uma longa sequência de processos burocráticos são necessários: “Ó contato pra o meu branding / email uma média vai ao mês e em / meses A VOCÊ GÁS e será então / EVENTO de um astrolábio emissor” (1.10-13). A partir da sua criação dos cabelos de Qerhet surge a logística da empresa e do seu crânio é feito o estacionamento de caminhões (“De cabelos Qerhet manifesta a logística. De caminhões de Gás, do crânio ígneo A”. 2.31-32).

 

Logo Qerhet faz a empresa crescer, como nota Erica Mariana em uma planilha do excel: “a empresa decola, feito 4x de gastos.doc / assim arquivo Microsoft, ao lado de ela Calisto a Ursa Maior, / ao lado de EGE Arcturo, filho, Erica CEO no céu profundo.” (2.33-35).

 

Érica se torna CEO da Ultragaz e as filiais da empresa se espalham universo afora. O mito continua metamorfoseando Qerhet ora em Érica Mariana, ora em Lucretia, ora em EGE (caminhão de transporte) ou em Feca. Sua presença é constante desde o começo do texto, ainda que sob outras figuras. Pode-se dizer que este texto é uma cosmologia disfarçada de mito de criação de uma empresa de gás, na medida em que há paralelos que podem ser feitos entre a expansão da empresa e a criação da matéria. Assim o mundo é criado pela expansão do gás representado sob a figura contratual da empresa: “Avança Filial-Brasil de rápida, harpia pe, / arde o Tmolo, Maranhão, o Ida seco então, / Filial em Etna, Hélicon de atendentes vários / Recife, o Mícalo e o Citéron, abertas galope / de EGE feroz, em estacionamento exclusivo.” (3.40-44).

 

Em resumo, o mito continua com Qerhet, que fala por meio de EGE sobre um perigo cibernético. A seguir, Iqbal, deus trickster, (ver Fig. 11) atravessa os scripts do Excel, toma conhecimento da empresa Ultragaz criada por Érica Mariana e mostra seu desejo de roubar a companhia de gás só para si mesmo. Decidido a roubar a empresa, Iqbal planeja se fantasiar como um atendente da filial em SP para entrar sorrateiramente e sabotar a fotocópia do cartório. Portanto, o deus tenta criar suas vestimentas com uma impressora 3D emprestada pelo sobrinho-maçã de Nebqerhet, Gê. Os dois comentam sobre a filosofia da criptomatéria usada nas impressoras, que explica a criação da constelação de Jorge-Foronae (não há evidências da existência desta constelação). O texto termina com a unificação temporal de Iqbal com o gás primordial criando um paradoxo ontológico que culmina na criação da empresa de gás.

 

Foi preciso um estudo detalhado para descriptografar os cantos de imagens e memes encontrados na internet, e ainda assim, acredita-se que uma pequena parte do material pode ter sofrido alteração decorrente do seu alto teor de instabilidade semiogética. Porém, os cantos são os textos do cânone de Qerhet que foram encontrados mais intactos. 




O CULTO DE QERHET

 

Acredita-se que o culto esteja presente nos submundos das culturas desde tempo imemorial. O culto utiliza de táticas meméticas de propagação, igualando-se ao movimento estocástico das moléculas de gás, se infiltrando no imaginário sub-popular de forma a pôr em xeque o estatuto da realidade vigente. Por meio da auto-propanação eles acreditam, como diz um de seus textos, ser possível “garantir que os historiadores do futuro tenham emprego”, possibilitando o surgimento de materiais e fragmentos míticos que confundem-se com a realidade de modo que não saibamos distinguir o que é dado histórico e o que é fruto da mente coletiva do culto. Por este motivo o culto se beneficia de qualquer tentativa de compreendê-lo e, por sua vez, de análises como a deste artigo. Toda tentativa de compreender e hipotetizar sobre os motivos e histórias do culto não se diferencia em essência do próprio trabalho auto-propanatório dos cultistas. Deste modo, a principal ferramenta textual com que os cultistas usam para propanar sua crença pode ser entendida como uma forma de retcon (continuidade retroativa), ferramenta capaz da inserção da novidade no dado sem que haja quebra da continuidade narrativa. É possível mensurar o número de retcons de um determinado texto, ainda que seja um valor aproximado, ao analisá-lo dentro de uma câmara de alta pressurização semântica.

Um dos focos do culto que abrange tanto o extemporâneo quanto o histórico, se dá em torno de empresas de distribuição de gás. As iconografias e simbolismos da arte da dinastia de Nebqerhet e Neferhau usam predominantemente elementos anacrônicos que remetem à prática moderna de venda de botijões. Todo o complexo mitológico do culto emprega o uso deste simbolismo num sentido retrocausal, onde o elemento anacrônico é introduzido no passado, retroafirmando as práticas e rituais do culto dentro de um loop temporal perpétuo.

 

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Fig.4: Reconstrução do papiro JG 930

 

As iconografias anacrônicas que fazem alusão a venda de gás adquirem um sentido mais abrangente ao serem inseridos no contexto egipcio antigo, sendo resignificadas, ganhando um sentido cosmogônico. Observamos isto, por exemplo, na Fig. 4, reconstrução do papiro JG 930, aonde podemos ver o faraó Nebqerhet, que assume aqui o papel de gaseiro arquetípico, nos cantos inferior direito e esquerdo segurando um trono com um botijão, fazendo uma alusão clara ao logo da Ultragaz. No trono, o botijão segura um prato de oferenda que representa o ato de ceder parte do gás no seu interior para esquentar a comida. Frente às representações de Nebqerhet estão várias pessoas em um tipo de estrutura predial (possivelmente a mítica cidade de Mompa) esperando o recebimento da bênção do gás. Ao combinarmos estes símbolos, conseguimos claramente notar o paralelo com o processo moderno de aquisição de botijões de gás que é recontextualizado nesse desenho de modo a designar a onipresença temporal de Qerhet, (indicada pela figura de Heh-Qerhet) que acaba por trazer satisfação para seus adoradores. Os adoradores, por sua vez, agem como o alicerce para a permanência deste processo, estando eles dentro da estrutura que é encimada por seu agente primário.

 

Este papiro é um dos claros exemplos de obras que representam anacronismos referentes a inserção de iconografias modernas em relação a empresas de gás, porém seu estilo e sua paleografia datam de períodos em torno de 1550 a.C. o que o qualifica como parte do escopo histórico de estudos.

 

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Fig 5: Estela egípcia, “Nebqerhet se apresenta para seus clientes”. Vestimenta cerimonial típica dos funcionários da Ultragaz, c. 2019? d.C?; Fig 6: Matthaeus Gashélius, Cardeal-Botijão (1954),  releitura da obra Matthaeus Yrsselius, Abbot of Sint-Michiel’s Abbey in Antwerp de Peter Paul Rubens, descoberta por intermédio de análise grafo-cromática em câmara de alta pressurização semântica  (1541–1629).

 

A existência desta interpolação iconográfica entre tempos ressalta a teoria de que o culto faz o uso proposital de BSS’s (Bolhas de Superposição Espaço-Temporal) para se inserir no passado x xxxxx xxxx xx, xxxxx xx xxxxxxx x x xxxxxxx xxxx xx xxxxxxx xxxxx xxxxxxxx. Xxxx xxxx xxxxx xxxxxxxxx xxxxxxxxx xx xxxx xx XX XXxx., o que atesta a existência de Qerhet, e o uso da auto-propanação como um mecanismo real, não meramente metafórico, de retrocausalidade capaz de reinserir na história elementos anacrônicos do futuro.

 

É muito difícil aferir a existência histórica dos personagens e locais citados pelo culto, pois além das capacidades de distorção temporal que Qerhet possui, a suposta dinastia de Nebqerhet e Neferhau é situada no segundo período intermediário, que foi um período de fragmentação política no egito antigo, o que favorece a ofuscação de dados históricos e a obscuridade das dinastias. Em todo caso, o culto tem como legado um robusto conjunto de mitos e costumes. Como exemplo, acredita-se que desde o tempo de Nebqerhet o culto mantém o costume de usar um capacete com forma de botijão na cabeça como peça cerimonial (ver Fig.5 e Fig.6). O próprio faraó utilizava de uma modificação de uma coroa pschent com o tampo recortado de um botijão, o que, por sua vez, sinaliza o papel do crânio como receptáculo do gás espiritual (o ka dos egípcios) que o conecta a Qerhet.

 

5.1  Garrafa de Klein

Outra figura conceitual e pictórica comum na arte e na literatura da dinastia de Nebqerhet, é um estranho hieróglifo que existe apenas nos textos da biblioteca de Akhmim e parece representar uma garrafa de klein.

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Fig 7: Papiro “Qerhet soberano dos gaseiros da cidade de Heh” AC 1038. O estilo do desenho é atípico frente aos padrões egípcios, provavelmente foi desenhado por um adorador contemporâneo, talvez copiando de uma fonte antiga que não conhecemos; Fig 8: Detalhe de hieróglifo com o símbolo similar ao logo da empresa Ultragaz, bem como uma variação do hieróglifo determinativo para deus (A40) com o hieróglifo KL no lugar da cabeça, simbolizando Qerhet.

 

  Podemos ver este hieróglifo no papiro AC 1038 (Fig.7 e Fig.8) e no papiro KL 340 (Fig.9). O papiro KL 340, apesar de fragmentado, é a melhor fonte disponível no que tange o significado deste símbolo.
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Fig.9: Reconstrução do papiro KL 340

 

O hieróglifo KL (abreviação de Klein, nome usado para se referir a este símbolo), aparece neste texto tanto como o determinativo para a palavra “ḳḥ, que é o nome de um tipo de vaso, como para “ḳḥ, que significa “dobra”, além de ser empregado na variante particular de Qerhet do determinativo usado em nomes de deuses.

A inclusão simultânea destas duas palavras com escritas similares, parece ser uma forma poética de insinuar a natureza de Qerhet explicitada por este hieróglifo.

Observe a tradução do texto do papiro:O Culto de Qerhet Y3a1m9gNtJQQvBlferwa2K_zaLTuT1CZdL1QiI6LWIsXs9NWjGz5jkRRC37-yLDcNcjWCmu_SMz9VnvERJa_FY7PCHgrhgji_AQ215-9Q0cBzGw6HoD2flKsmRJswtDYoTuz57uSVLX7Pg4ImHc0tc0


A primeira linha, faz uma clara alusão à autopoiese, o processo de auto-gênese de Qerhet. Neste texto, a ideia da catalisação do paradoxo ontológico é expressada pela palavra “dobra”, (ḳḥ) que é escrita acompanhada pelo hieróglifo KL, transmitindo a ideia de que ele é uma representação deste ato, ou um complemento simbólico que auxilia no entendimento do significado da palavra no contexto. Considerando estas duas premissas, é possível entender que a palavra “dobra” nesta primeira linha, tanto como o hieróglifo KL, tem um sentido bem específico, no sentido de representarem uma subjugação do tempo ao ímpeto autogênico de Qerhet.

 

O vaso dobra o vaso” é uma alusão a sobreposição que a garrafa de Klein faz em si mesma ao ser representada num espaço tridimensional. Esta sobreposição é expressada pela palavra “dobra”.  Se combinarmos o sentido da palavra “dobra” na primeira linha e o seu sentido na segunda linha, entendemos que a garrafa de Klein é uma representação topológica da autopoiese de Qerhet e do paradoxo ontológico. A segunda linha é uma descrição visual do que o autor explica de forma abstrata na primeira linha. Vale ressaltar também a igualdade das palavras “dobra” e “vaso”, sendo a frase “o vaso dobra o vaso” também uma representação textual desse processo topológico pela repetição da mesma palavra “ḳḥ ḳḥ ḳḥ”. O fato do hieróglifo KL aparecer como determinativo para as palavras “vaso” e “dobra” na segunda linha, bem como o fato das duas palavras serem escritas de forma similar, parece ser uma forma de transmitir a ideia de que Qerhet é o agente responsável por todas as etapas de sua auto-gênese, tanto o causador quanto a causa.

 

A terceira linha é a mais danificada do papiro, e por conta disto, o seu significado é o mais difícil de se aferir. Mas é possível tecer uma teoria ao analisarmos o desenho que acompanha o texto hieroglífico.

 

O desenho retrata o faraó Nebqerhet fazendo uma oferenda a Qerhet em sua forma de “vaso de dobra”/garrafa de Klein (ḳḥ ḳḥ). Qerhet aparece acima, com o hieróglifo que representa o Ka situado em sua extremidade superior, encimado por um mise en abyme de si mesmo.

 

O termo “multitude de formas” pode ser uma referência a essa projeção ad infinitum da figura de Qerhet. Levando em conta todo o contexto apresentado pelo texto, é possível teorizar que o desenho está representando o processo de autopoiese de Qerhet, se repetindo infinitas vezes, inclusive textualmente. Qerhet dobra a si mesmo, e dobra o tempo, alimentando o processo pelo qual sua existência é concebida, configurando um loop temporal eterno, que é simbolizado pelo mise en abyme do papiro.

 

O hieróglifo de Ka na extremidade superior de Qerhet representa o processo de alimentação retrocausal que sustenta a existência do paradoxo ontológico. Este processo pode ser tanto o ato de dobrar o tempo, como a prática de auto-propanação dos adoradores de Qerhet, cujo movimento é análogo ao movimento das moléculas de gás, que por sua vez, são representadas pela ideia de Ka dentro do contexto literário da dinastia de Nebqerhet e do culto de Qerhet.

 

5.2 A Pirâmide de Isfetmes

No cerne do culto de Qerhet reside um elemento anfigúrico que se mantém elusivo frente às nossas tentativas de aferir seu verdadeiro significado.

 

Todo o material coletado até o momento, seja ele de origem antiga ou contemporânea, parece convergir em sua fonte extemporânea para um elo perdido que liga as temporalidades em um emaranhado, que apesar de ininteligível para aqueles de fora, forma uma teia complexa e concisa para os iniciados. A primeira hipótese que surgiu para tentar explicar o que seria este elemento obscuro, é a de que poderia se tratar do que é vagamente aludido em materiais esteganográficos extraídos de conteúdo de marketing de empresas de gás como o “Guzoh Kad”.

 

O Guzoh Kad seria um objeto ou entidade que reside no anticosmo (“dimensão paracrônica externa ao universo e a causalidade” (BARTON, p.199), aonde Qerhet habita, segundo seus adoradores) que muda constantemente de forma, assumindo, segundo algumas fontes, a “forma de um botijão gigante” em algumas ocasiões.

 

É dito que aquele que consegue se aproximar do Guzoh Kad é “capaz de adquirir mais conhecimento do que o maior dos eruditos poderia conseguir em mil anos” (Ibid. p.203), mas em contrapartida, o indivíduo detentor de tal conhecimento seria condenado a perder a capacidade de se comunicar claramente, estando impossibilitado de transmitir o que aprendeu para outros.

 

É possível, portanto, que o Guzoh Kad seja uma matriz de informação extemporânea, que orienta os passos do culto pelos tempos, através de conhecimento indireto, reconfigurado a um formato inteligível por meio da auto-propanação.

 

Outro elemento do imaginário do culto que pode nos levar a uma segunda hipótese, é a pirâmide de Isfetmes. O mito da pirâmide de Isfetmes está intimamente ligado às histórias que cercam a figura cujo o epíteto é “O Eremita da Lua”, o profeta zuavo chamado Iqbal Al-Ghazali. Iqbal Al-Ghazali é um zuavo que alega ter sido levado para um lugar, que ele acredita ter sido a lua, por uma entidade chamada “Apocolocynthot”. Segundo Iqbal, Apocolocynthot o guiou até uma pirâmide de dimensões titânicas, e disse que lá estava sepultado o corpo de um faraó do antigo egito chamado Isfetmes (Isfetmes é um outro nome usado pelo faraó Nebqerhet, segundo nossas fontes). Apocolocynthot ordenou que Iqbal entrasse na pirâmide e copiasse os textos hieroglíficos nas paredes da pirâmide e depois traduzisse os textos. Ele disse a Iqbal que os textos haviam sido redigidos por ele, embora ele não se recordasse disso, e que assim que ele visse os símbolos ele lembraria do seu significado. 

Apocolocynthot entregou os materiais necessários para a execução da tarefa, e Iqbal, obedecendo a Apocolocynthot, entrou na pirâmide e copiou todos os textos em seu interior. Iqbal relata ter passado um longo tempo sozinho copiando os textos da pirâmide, o que lhe rendeu mais tarde o título de eremita da lua. Após ter terminado sua laboriosa tarefa, Iqbal saiu da pirâmide, se encontrando novamente com a entidade. Apocolocynthot disse que o levaria de volta a sua casa, e que ele deveria traduzir os textos que copiou assim que chegasse lá. Iqbal perguntou o que deveria fazer depois de terminar a tradução, e Apocolocynthot respondeu dizendo que todas as respostas estavam nos textos que ele havia copiado da pirâmide.

 

Regressando a sua residência, Iqbal fez como fora ordenado, e traduziu os textos da pirâmide. A tradução para arabe dos textos da pirâmide de Isfetmes, bem como o relato de como Iqbal fora levado para a lua para copiar os textos da pirâmide, foram incluídos em um livro chamado “Kitab Al-Ghazali” , que significa “O livro de Ghazali”.

 

Tudo leva a entender que os textos da pirâmide de Isfetmes tem uma importância enorme para o culto, e que seu conteúdo é a base para todas as ações do culto tanto no passado como no futuro.

A partir de algumas alusões simbólicas na mitologia de Iqbal, deduzimos que o conteúdo deste livro foi codificado por Iqbal como um atavismo memético na imagética do botijão, de modo que hoje os idealizadores de peças mercadológicas de empresas de gás, incluem de modo esteganográfico alusões ao complexo mitológico de Qerhet em seus materiais, sem terem ciência disto. Deste modo, a auto-propanação seria um meio de reconfigurar esse conteúdo, tanto para despistar as mensagens daqueles que não deveriam ter ciência da existência deste conhecimento, como para reafirmar o conteúdo, o inserindo em contextos mais abrangentes, para que o escopo causal do texto ganhe mais potência.

 

Temos pistas de que o conteúdo de Kitab Al-Ghazali foi traduzido para outras línguas e inserido junto de outros textos mais recentes em um livro chamado “A Psicostasia do Caos”. Não conseguimos descobrir nada acerca do conteúdo deste livro, mas o título nos direcionou a uma linha de investigação que julgamos frutífera.

 

Psicostasia é um termo de origem grega que descreve o procedimento na mitologia do antigo Egito, no qual o coração de um falecido era colocado em um dos pratos de uma balança, enquanto uma pena de avestruz (simbolizando a delicadeza ou o coração da divindade Maat) era posicionada no segundo prato. Caso houvesse equilíbrio entre os pratos, o morto era julgado inocente, demonstrando ter sido virtuoso em vida. No entanto, se a pessoa tivesse se comportado de maneira negativa, cometendo transgressões, o coração ganhava peso adicional, levando à condenação do indivíduo, e seu coração seria devorado por Ammit, uma criatura híbrida (com partes de crocodilo, pantera e hipopótamo), simbolizando a eterna aniquilação do falecido.

 

Existem desenhos do período histórico do culto de Qerhet, que retratam uma inversão herética do papel que um morto deveria assumir na psicostasia, e julgamos que o conteúdo da Psicostasia do Caos esteja diretamente ligado a estas iconografias hereges. Podemos ver isto por exemplo na Fig.10 que retrata Nebqerhet atacando Ammit. Não temos o contexto desta cena, mas teorizamos que Nebqerhet passou pelo processo de psicostasia, e quando seu coração se revelou mais pesado que a pena, Ammit avançou para poder devorá-lo, mas foi interrompida pelo faraó, que renitente, golpeou Ammit para evitar sua destruição.

 

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Fig.10: Papiro “Nebqerhet ataca Ammit”, NB 561
 

Textos em pirâmides, assim como os textos de sarcófagos, e os papiros deixados com múmias, são textos com finalidade mágica, que são escritos com o propósito de auxiliar o morto em sua viagem pelo duat. A julgar pelos desenhos hereges, e o contexto geral em que a dinastia de Nebqerhet está inserida, deduzimos que o conteúdo da pirâmide de Isfetmes, que mais tarde foi traduzido, e está incluso no livro Psicostasia do Caos, seja um manual de instruções para Nebqerhet, não meramente para auxiliar a sua travessia pelo duat e atingir a imortalidade, que é reservada aos indivíduos que passam pelo processo da psicostasia e que tem o coração julgado bom, mas para derrubar a Maat, ou seja, a ordem do universo, minando a realidade vigente, cumprindo o propósito final de Qerhet.

É possível que os textos da pirâmide de Isfetmes funcionem como mapa para os adoradores de Qerhet, sinalizando todas as intervenções de Qerhet nos tempos, indicando como devem proceder para cumprir o imperativo de seu deus. Isto explicaria esta convergência informacional extemporânea que permeia todos os tempos em que Qerhet está presente, amarrando todos esses momentos separados num plano ininteligível para os que estão fora do loop temporal.

 

Quanto aos motivos do ímpeto colérico de Qerhet em relação a ordem e a realidade, pouco se sabe concretamente, mas é nítido que os seus adoradores entendem a ascensão do caos e a queda da ordem como um meio pelo qual irão atingir um estado de liberdade apoteótico, que é simbolizado pelo gás, em seu movimento molecular. Existem referências escassas a uma entidade antagônica aos propósitos de Qerhet, chamada de o “Ontofago” (que no contexto da ordem significa algo como “o devorador de realidades”). Esta entidade, força da natureza, ou egrégora transtemporal, seria responsável por inibir movimentos que podem colocar em risco sua imanência noosférica, os eliminando antes que possam surgir, devorando os acontecimentos, os apagando da linha temporal. As maquinações extemporâneas de Qerhet, seriam um meio de confrontar esta entidade, em uma configuração mitológica análoga ao motivo literário chamado de Chaoskampf mesclado com características de um culture jamming transdimensional. Este confronto se dá penetrando a consciência coletiva através do atavismo memético codificado por Iqbal, destruindo a identidade vigente do Ontofago, o transformando num arauto do caos.

 

A qualidade incognoscível da origem de Qerhet, conferida pelo natureza enigmática do paradoxo ontológico que a concebeu, seria uma proteção, que obstruiria qualquer tentativa do Ontofago de eliminar sua existência e apagar a sua influência no tempo.  


CONCLUSÃO


O culto de Qerhet é composto por uma miríade de imagens e textos que desafiam o nosso entendimento acerca da realidade histórica e da continuidade temporal. As ferramentas de edição retrocausal são responsáveis por uma cisão no tempo capaz de inserir na história elementos futuros diversos e a dificuldade de analisar o culto se torna o próprio método com que os cultistas pregam suas ideias extemporâneas. Emergindo do movimento caótico de propanação, ideias, deuses e personagens surgem para complexificar este período tão obscuro quanto interessante do período do Egito.

 

Desta dinâmica de atores e efeitos tiramos duas lições: 1) O passado está em aberto tanto quanto o futuro. 2) A linearidade do tempo pode ser quebrada coletivamente. Memória e imaginação confundem-se nas entranhas deste culto enigmático. As edições anacrônicas, por sua vez, nunca trabalham a despeito da validade do material histórico que editam – estão sempre servindo como ferramenta para multiplicar ideias, personagens, histórias, etc… povoando o passado de vida. O choque não-linear entre agentes históricos tece uma trama intrincada que nos cobre como uma abóbada, mapear a história é portanto traçar constelações de povos e ideias. Nesse jogo, imaginação é uma ferramenta, como um martelo ou um cinzel, que também se usa para esculpir objetos do tempo.


 
FIGURAS ADICIONAIS


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Fig 11: Desenho de um zuavo, que retrata a possível aparência de Iqbal Al-Ghazali, editada por discordianos. Os adoradores de Qerhet costumam usar esta imagem em operações de auto propanação em que a identidade dos membros é ofuscada por meio do uso de uma persona coletiva Fig 12: Vaso-botijão encontrado nas ruínas de Akhmim cujo interior continha vários papiros. LIMEN, 2018. A cor azul (azul egípcio ou cuprorivaite), também encontrada com frequência em botijões modernos, era tida com alta consideração pelos egípcios.

 

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Fig 13: Filial da Ultragaz em Akhmim. A existência do local não foi confirmada, acredita-se que a imagem seja uma montagem. Fig 14: Papiro KL 340. LIMEN





Papiro JG 930

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Ostraca AFN 193JR0
O Culto de Qerhet Sa5d6nqcYKOGKsg7goxUWLxsQx1-L3KgmhKVCSg4OuHBCklGUIG3XXo5RWReSY9PxplbiR7KA-VSTiI-_Bcjxyk8yKJv2Q13dSU1_PeUC9VU7aQog40I0YYTWCt4FhR0gnN4eirdVo-2kq2SADnGdvQ








VIII. BIBLIOGRAFIA

 

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